Somos Anjos Decaídos

Recentemente, li um livro da filósofa alemã Hannah Arendt – Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Trata-se do relato real do julgamento de um oficial nazista, Otto Adolf Eichmann, que durante a Segunda Guerra Mundial foi o encarregado do transporte de judeus rumo à “Solução Final”. Arendt, que presenciou o julgamento na condição de jornalista, presenciou também a declaração fulminante e absurda de Eichmann: “Sou inocente; estava apenas cumprindo ordens”.
A Segunda Grande Guerra ficou marcada na história por ter sido uma guerra sem precedentes. Entretanto, parece que nos esquecemos de que todas as conquistas de povos ditos poderosos foram construídas com o sangue do inimigo. Hitler não foi o único a cometer atrocidades por aí; outros países da Europa já estiveram por essas bandas americanas em tempos mais remotos e liquidaram um número ainda maior de pessoas do que os seis milhões de judeus do século passado. E mesmo por aqui, os povos primitivos lutavam entre si e o perdedor era sacrificado ou escravizado. O que se apresenta de novo em Hannah Arendt, que era judia, é a denúncia da contribuição pacífica do seu povo aos nazistas. Hitler não teria conseguido sozinho com seu pessoal mandar para a câmara de gás toda essa gente se a burocracia não lhe tivesse vindo toda organizada por parte dos próprios judeus. A autora condena veementemente essa contribuição e cita como exemplo o caso da Dinamarca, que se recusou a entregar para os policiais da SS seus judeus, alegando vários problemas burocráticos, problemas que os alemães não sabiam como resolver e simplesmente abandonaram o caso. Pelo menos naquele país os judeus estavam salvos.
Há que se pensar na condenação feita por Hannah Arendt. Ela não ficou na Alemanha durante a guerra; fugiu para os Estados Unidos antes das emigrações forçadas e não pôde presenciar ao espetáculo de horror daqueles que ficaram. Como impor, então, uma condenação quando famílias são brutalmente assassinadas e, antes disso, obrigadas a cavar suas próprias covas? Os colaboradores, em tempos de guerra, sempre existiram e por razões pra lá de óbvias: salvar a própria vida e a dos seus. Esse valor é irrefutável.
As ordens cumpridas à risca por Eichmann levaram Arendt a uma reflexão. A prática do mal era coisa banal e obedecer às ordens de um superior era muito mais importante; demonstrava profissionalismo e lealdade. Não havia como descumpri-las. Quantas vezes nos deparamos com esse tipo de declaração: “Hoje em dia nada mais me espanta!”? Alguém se lembra do menino João Helio? A barbárie sofrida por ele não faz muito tempo, mas a notícia, na época, foi substituída por outra, a dos estudantes mortos pelo rapaz raivoso numa universidade dos Estados Unidos, fato pra lá de corriqueiro por lá. Queimar pessoas vivas não se deu apenas durante a Inquisição; traficantes, que também são inquisidores, queimam pessoas vivas por motivos que somente eles têm.
A história da humanidade está repleta de crimes bárbaros, com vários tipos de requinte à escolha do assassino. O mais recente, aqui no Brasil, envolve o goleiro Bruno, do Flamengo. Esse crime comprova uma tese que venho defendendo há algum tempo: mesmo que você seja rico, estude. Uma pessoa burra com dinheiro é capaz de aumentar sua burrice e, na mesma proporção, perder sua riqueza material. Prefiro continuar me espantando com toda essa barbárie a achar tudo isso normal. Quando a Nave da Destruição passar por aqui, apenas os espíritos que aprenderam alguma coisa de bom permanecerão; Brunos e Hitlers decairão mais um pouco, numa demonstração de que o Bem existe. De todos os Mandamentos, apenas dois são divinos: “Amar a Deus sobre todas as coisas” e “Não tomar seu Santo Nome em vão”; todos os outros são morais e implicam a boa convivência entre os homens. Por que será?